back<
[versão original - portuguesa]
[for English please scroll down]

Narciso de todas as espécies (texto a partir do filme)

Para construir este texto parto de um filme montado em Dezembro de 2017 com o título Narciso de todas as espécies. O filme, planeado desde 2015, de carácter pedagógico vogou em torno das transformações urbanísticas - e consequentes impactos sociais e culturais na cidade onde vivo, Guimarães - que envolveram directamente os lugares e as pessoas que fizeram parte da minha vivência durante a última década. No entanto, o filme focou-se num espaço específico apenas e nos acontecimentos, relações e fenómenos que a partir dele foram vivenciados. Resolvi montar o filme a partir da fábrica-atelier onde funcionava o espaço de exposições com o nome O sol aceita a pele para ficar (mais conhecido por Sol Pele).

Este texto funciona como um diário sobre as decisões teóricas e relacionais que tiveram lugar na montagem do filme, das quais surgiram novas relações que lhe dão autonomia na capacidade de produzir novas imagens. Inverter a ordem e utilizar o filme como pré-argumento para escrever este texto proporcionou-me mais tempo para pensar as imagens-movimento que resultaram da montagem fulminante feita, imediatamente, a seguir ao despejo efectivo do espaço, das pessoas e bens que o filme capta. São diferentes velocidades de produção em diferentes meios e em diferentes períodos.

O filme começa com uma prolepse - a demolição do edifício adjacente ao atelier. No filme Narciso de todas as espécies, o período representado está compreendido entre 2008 e finais de 2017. Contudo a concentração das imagens situa-se nos dois últimos anos. O filme tem três capítulos de que gostaria de considerá-los como narrativas em vez de género: música, activismo e narciso de todas as espécies, respectivamente. O último capítulo dá nome ao filme.
O primeiro capítulo é dedicado aos outros artistas da fábrica e aos seus espaços de acção e criação, ambientes sonoros também. Assim, o filme seguiu intuitivamente a lógica de vivência particular de um atelier partilhado. A dimensão procurada neste atelier era que, de facto, era colectivo e todos tinham espaço dentro dele, é de facto um capítulo solidário com os outros. A música era presença frequente pelos ensaios que lá decorriam, e este capítulo serve para envolvê-los na minha vivência.
O segundo capítulo é dedicado ao activismo, como acção colectiva, na defesa de vários elementos a proteger na transformação urbanística. Essa forma de activismo começou com a organização de Assembleias Populares da Caldeirôa. Estas assembleias eram o elemento formal que nos permitia discutir sobre que acções seriam tomadas. Eram reuniões sem hierarquias estabelecidas de reforço ideológico na ecologia, urbanismo, arqueologia, arte, cidadania, entre outros assuntos. Os panfletos de divulgação das assembleias eram impressos com um prelo de tipos móveis pertencente à Organização Regional de Braga do Partido Comunista Português usado durante o período da ditadura do Estado Novo. Era um prelo pequeno e propositadamente manual, o que evitaria o ruído maquinal nas impressões, fácil de transportar e de esconder. O uso deste equipamento nas nossas assembleias criava naturalmente uma ponte temporal, também simbólica, com o trabalho clandestino de outrora. Essa ponte estava na relação entre vida e arte que ela representava**.
Todavia este capítulo também faz uma introdução ao capítulo seguinte na correlação entre imagens e vivências. Por exemplo, após um longo plano sequência de um dos jardins do quarteirão, cola-se um outro plano captando a conversa com a artista Cristina Regadas, no seu atelier, enquanto apresenta os líquidos resultantes da extracção de cores a partir de plantas tintureiras usadas nas suas pinturas.

O terceiro capítulo, com o nome de Narciso de todas as espécies, começa com a Faty, a cadela residente no atelier, a passear junto a um lago turvo. E, quando algo lhe chama a atenção ela aponta os seus sentidos para ver do que se trata. Este é o capítulo mais metafórico do filme, com imagens concretas do local, da vivência com os animais e plantas que se tornaram essenciais à realidade do espaço, com as pessoas convidadas a expor no Sol Pele.
O João Almeida, que é autor dos versos donde o nome do espaço foi retirado***, construiu uma instalação como se se tratasse da sua própria poesia em 3D. No dia 17 de Outubro de 2015, a conversa a partir do trabalho do João Almeida aconteceu sob uma tenda de manga plástica integrada na exposição Jardim do próprio João Almeida. Este plano é particularmente simbólico por captar imagens dessa primeira intervenção no espaço, por mostrar as relações de amor que desenvolvi com o poeta e por significar uma nova ponte temporal e cultural com uma situação real. A instalação mimetizava através da encenação uma vigília decorrida anos antes na fábrica onde havia trabalhado o seu pai.
O filme prossegue, em sequência, com uma flor narciso desenhada a pincel e tinta-da-china, com as expectativas futuras captadas no último encontro público da equipa do programa Arte e Arquitectura no evento Capital Europeia da Cultura - Guimarães2012, e com a entrada dos técnicos e polícia camarária para a expulsão dos artistas e remoção dos bens da fábrica, em Outubro de 2017. Esta sequência completa-se com a captação do processo de transporte de objectos e plantas, sendo cortado por um plano com dupla exposição de imagens composta por uma vista panorâmica sobre o centro da cidade e um desenho de dois narcisos em execução. O filme termina com uma obra da exposição Faces da Lua, da escritora e artista Lauren Moya Ford - uma pintura sobre papel, frente e verso, em que de um lado está um eclipse lunar e do outro uma chama de fogo vivo.



[O livro com o texto completo, mais o filme em dvd, foi lançado em Outubro de 2018 pelo i2ADS - Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade, da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto]

-----
Notas:
O sol aceita a pele para ficar foi um espaço de exposições, gerido e suportado em conjunto com Filipa Araújo, foi inaugurado a 18 de Setembro de 2015 com a exposição Jardim, de João Almeida.

** No conjunto que acompanhava o prelo havia uma gravura icónica que representava as condições das tipografias clandestinas de um desenho do escultor e militante José Dias Coelho, assassinado por um agente da P.I.D.E., em 19 de Dezembro de 1961.

***O Sol Aceita a Pele Para Ficar é um excerto de um verso do poema A7, do livro O Mal dos Postes de Alta Tensão (2000), edição Black Sun, Lisboa.

__________________________________________________
__________________________________________________
English version
(translation by André Alves)

Narcissus of all species (an after-movie script)

In order to produce this text, I'm revisiting the movie Narciso de todas as espécies [Narcissus of all species] edited in December 2017. Scripted in 2015, the movie's pedagogical tone aimed to unpack the transformations brought by the urban development of the city I inhabit, Guimarães, and consequently, the social and cultural impact affecting the places and people that have been part of my life in the past decade.
The end of the film focuses on a particular place and the events, relations and phenomena revolving around it: the factory/art-studio that hosts the exhibition space O Sol Aceita a Pele Para Ficar* [The Sun Accepts the Skin to Stay], commonly known as Sol Pele [Sun Skin].

This text functions not only as an after-movie log, a diary regarding the process of conceptual and relational decisions made while editing the film, but also to meet possibilities of newer relations which acquire autonomy from the produced images. In such a flip, the film becomes a script from which this text emerges; it allowed me the chance to reflect on the rushed editing process of the images-movement that tried to keep up with the event of eviction and expulsion from Sol Pele. This text is an opportunity to reflect on the different levels of production in different media and different periods.

The film starts with a prolepsis: the demolition of the building neighbouring the factory/art-studio building. The period represented in the film Narciso de todas as espécies spans from 2008 to the end of 2017, with a particular focus on the last two years. The film is divided into three chapters that I would like to consider as narrative threads rather than genres, those being: music, activism and narcissus of all species. It is this last chapter that gives the title to the film.
The first chapter followed intuitively the same logic that sustained how the shared art-studio was lived in. It tries to capture the artists who shared the factory with me, the spaces of their doings and creation, and the specific soundscapes of each one of them. This art-studio gave indeed a dimension of a collective feel - truly a supportive chapter with others. And because music was a frequent presence due to regular rehearsals, this chapter tries to capture that.
The second chapter focuses on activism as an expression of a collective action seeking to defend distinct causes when met by new urban planning proposals. Such activism took the form of organized public assemblies - Assembleias Populares da Caldeirôa - which provided a formal structure through which concrete actions were discussed and planned. These assemblies did not have a central hierarchy and they were sustained by an assemblage of distinct principles, concerning the ecological, urban-development, archaeology, art, and citizenship. The visual material promoting these assemblies was printed in a small, manual letterpress property of Braga's Regional Organization of the Communist Portuguese Party used during the period of dictatorship (known by the name) of Estado Novo. The use of this portable noiseless device to print the assemblies' leaflets brought in a temporal and symbolic connection with the illicit purpose it had previously served, a connection that is also the relation of life and art**.
This creates a passage to the following chapter that focuses on the relation between images and life. For instance, a long sequential shot of a garden inside the quartier is followed by a shot capturing the conversation with the artist Cristina Regadas in her own studio, introducing the natural dyes extracted from plants used in her paintings.
The third chapter, with the name Narciso de todas as espécies, opens with Faty (the dog residing in the studio) walking next to a turbid lake. When something grabs her attention all her senses point to it. This is the most metaphorical part of the film, providing images of the site, of the daily living with animals and plants, which have defined so much of the place, and were cherished by those exhibiting at Sol Pele.
On October 17th, 2015, João Almeida - author of the verses from which the name of the exhibiting space Sol Pele was quoted*** - presented his exhibition Jardim [Garden] as an installation trying to translate his poetry into spatial terms and hosting a conversation under a plastic tent. The footage is symbolically revealing, trying to capture a sense of the first experience in the exhibition space, the fondness developed by the poet for the site, and for providing a temporal and situational correspondence with the current condition. Almeida's installation reproduced (through a re-enactment), a vigil that took place years before in the factory where the artist's father had worked.
The film progresses with a sequence of images: a narcissus being drawn with brush and Indian-ink; the last public gathering of the work team Art and Architecture of Guimarães 2012 ' European Capital of Culture; and the entering of the municipal police and town hall officers into the factory in October 2017 in order to evict the artists and remove their belongings. This sequence carries on with footage of the transportation of objects and plants, cutting to the overlap of images with a panoramic view of Guimarães' city centre and the act of drawing two narcissi. The sequence ends with a work from the exhibition Faces da Lua [Faces of the Moon], by the writer and artist Lauren Moya Ford: a double-sided painting on paper, one side depicting a lunar eclipse and on the other a lively flame.

narciso

book
[The book with the full text and the dvd was published by i2ADS - Research Institute of Art, Design and Society based at Faculty of Fine Arts, University of Porto (FBAUP)]

-----

Notes:
* The exhibition space Sol Pele is supported and run together with Filipa Araújo, and it opened to the public on September 18th, 2015 with the exhibition Jardim [Garden] by João Almeida.

** An iconic etching representing the condition of clandestine printing shops by the sculptor and partisan José Dias Coelho, murdered on December 19th, 1961 by an agent of P.I.D.E. [Polícia Internacional e de Defesa do Estado - International and State Defense Police, a security agency that existed during the Estado Novo (dictatorial regime) of António de Oliveira Salazar] was found along with the letterpress.

*** O Sol Aceita a Pele Para Ficar - The Sun Accepts the Skin to Stay, is an excerpt from the poem A7 by João Almeida, found in the book O Mal dos Postes de Alta Tensão - [The Ailment of High Tension Towers] (2000), edited by Black Sun, Lisbon.

back<