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Estação Encontro

9 de Novembro de 2019
Sociedade Martins Sarmento
Guimarães, PT

Um evento organizado por André Alves, Filipa Araújo, Max Fernandes, partindo da crónica "Protocolos de Encontro", de Dom Tolentino de Mendonça.

Convidados: Carla Cruz, João do Vale, Juan Luis Toboso, Magda Henriques.

Colaboração dos alunos do 1º e 2º anos do Curso de Aartes Visuais da Universidade do Minho (Guimarães).

O texto de introdução, instruções das oficinas, guiões para as diferentes leituras foram compilados numa sebenta feita para os presentes (clicar para visualizar e descarregar a sebenta do evento Estação Encontro).

emergencia tempos urgencia
Desenho de André Alves

15:00 Salão Nobre: Abertura de Estação Encontro e lançamento do livro "O que falta é amor."
15:50 Escadas: seguindo o perfume dos Amores (Perfeitos).
16:00 Claustro: oficina de escrita direta ao vivo.
16:45 Claustro: movimento de desaceleração temporal.
17:30 Cafetaria: merenda.
18:00 Sala de leitura: uma ação sobre futuros.
18:30 Salão Nobre: mesa redonda "Protocolos de Encontro" e "Nunca é tarde demais".
20:00 Cafetaria: Repasto e celebração de encontro.

[Salão nobre] Abertura de Estação Encontro e lançamento do livro "O que falta é amor."
capa sebenta estação encontro
"Boa tarde, sejam bem-vindos à Estação Encontro, um evento artístico desenvolvido a partir da defesa de uma ética de mutualidade, de reais conexões, de encontros. Uma defesa da possibilidade dessa imaginação ética como realidade política que, perante o atual cenário de urgência global nos questiona: como procederemos em relação ao futuro, como nos vemos a nós mesmos e ao outro, para lá do modelo de vida-fragmentada, apressada, desatenta, anestesiada e embrutecedora, que a realidade das nossas sociedades baseadas no consumo, na reputação e na competição sustenta?
Imaginar é essa ordem da experiência de onde o desejo, verdadeiramente, se funda. Talvez a nossa imaginação tenha entrado em greve e tudo nos pareça já definido, feito, imaginado, fechado. Esta tríade recusa essa crença.
Nós somos o André Alves, a Filipa Araújo e o Max Fernandes. Somos artistas, poetas e educadores.
O nosso encontro deu-se a partir da arte, da realização de exposições, em 2005.
E temos, desde então, protegido esse encontro. Esta é aliás uma questão na base do evento de hoje e na base das nossas preocupações mais alargadas: como cuidamos?
A arte tem-nos servido para proteger esse encontro, como pretexto para trabalhar em conjunto, como um método para sustentar a nossa amizade, sem saber se isso é um efeito ou isso mesmo o fim.

[Escadas]
Seguindo o perfume dos Amores (Perfeitos)
Texto de André Alves
Leitura interpretada por Marina Cyrino
perfume dos Amores perfume dos Amores
Em tempos, os alquimistas acreditavam que o amor
era mais do que um efeito de neurotransmissores no
nosso corpo. Acreditavam que a química do amor
existia além dos sentidos e que podia ser extraída
de plantas, que tal perfume podia ser extraído dos
Amores-Perfeitos.
Não se preocupem, o perfume do amor é
hipoalergénico.
O aroma dos Amores-Perfeitos é um aroma mágico.
Ele vai e vem, vai e vem, como um baloiço, um inebriamento.
E isso não é apenas uma metáfora, é uma
propriedade desta flor do amor. O composto químico
mais notável do perfume dos Amores-Perfeitos é
a ionona. Depois de estimular os recetores olfativos,
a ionona liga-se, "cola-se" a eles, deixando-os temporariamente
entorpecidos e insensíveis.
O cérebro simplesmente não consegue registar o
perfume enquanto os receptores estão dormentes.
Depois de um tempo, o perfume volta, mas o cérebro
não entende que é o mesmo perfume e regista-o
como um novo estímulo. E é por isso que o perfume
dos Amores-Perfeitos parece ir e vir, ir e vir, como
uma vertigem, como sonhos luxuriosos, como o
amor.
perfume dos Amores
Amores-Perfeitos são símbolos de renascimento e do
amor.
Mas, em servo-croata, Amores-Perfeitos dizem-se
dia-noite.
Em persa, Amores-Perfeitos dizem-se violeta.
Em polaco, Amores-Perfeitos dizem-se irmão.
Em francês, Amores-Perfeitos dizem-se pensamento.
Em grego, Amores-Perfeitos dizem-se joguei fora.
Em inglês, Amores-Perfeitos dizem-se alívios do
coração.
E só na nossa língua-mãe, Amores-Perfeitos dizem o
que devem dizer.

[Claustros]
Oficina de escrita direta ao vivo - Quem quer transformar a realidade?
Escrita direta é um método de criação em vídeo que usa a palavra, o desenho, a mancha e a voz para formar um pensamento e/ou um gesto. A oficina de escrita direta está aberta à participação de qualquer pessoa: basta comparecer nos claustros deste edifício, às 16:00.
"Quem quer transformar a realidade?" será a pergunta anunciada antes da oficina que avança sob quatro categorias de influência conceitual de Jerzy Grotowski: as formas de comportamento quotidiano mascaram; a ação absorve toda a personalidade do ator; dar e tomar; encontrar-se no outro.
Cada participante utilizará o seu próprio telemóvel nas máquinas propositadamente construídas para esta oficina e seguirá as indicações dos voluntários.

Oficina de escrita direta
Oficina de escrita direta
oficina de escrita direta oficina de escrita direta

[Claustros]
Estaremos destinados a ser apenas começos de verdade?
- Movimento de desaceleração temporal

"Estaremos destinados a ser apenas começos de verdade?" é um guião escrito por Filipa Araújo a partir de uma leitura dramatizada do céu no momento em que a performance começa.

Anotações para as personagens são apresentadas entre parênteses retos.

Personagens
Astropoeta
X
Saturno
Marte
Mercúrio
Amor e Horror
Sol
Vénus
Alhena e Fortuna

Movimento de desaceleração temporal

Astropoeta
[X sobe ao muro interno do claustro e começa a encher o balão, muito devagar. Astropoeta segura o telemóvel junto ao balão, amplificando o som. Esta ação deve conseguir reunir o público. Se o som de encher o balão não for suficiente, X deverá esvaziá–lo de modo a provocar um som agudo, voltando depois a encher.]

Há algum tempo, vi numa tapeçaria árabe uma cena de uma batalha… Nesse lugar, no meio do campo, no caos da refrega, estava um homem sentado no dorso dourado de um camelo. Observava o céu com um astrolábio.

[Micro–pausa e X passa o balão à Astropoeta.]

Naquele momento, o tempo desacelerou, Laquesis abrandou o fio que tecia, Clio adormeceu. Aquele homem procurava no firmamento que estrelas e astros se constelavam.

[X sai de cena.]

O céu estava ilegível. Não se via céu nem terra — só escuridão.

[Todas as personagens desenham um mapa nas palmas da mão. Astropoeta desenha, com auxílio do público, na sua própria mão.]

Observei–o também e percebi que nem mesmo pelos sentidos tinha a convicção de que havia céu e terra: a escuridão tirava–lhe os lugares. Só havia escuridão, lugar e formas.

[Astropoeta caminha para o lado do claustro onde se encontram os guerreiros. Personagens e público seguem–na. Saturno irá sentar–se no muro. Marte irá colocar–se ao lado das estátuas dos guerreiros.]

E confiei intuitivamente que existia, céu em cima, e terra, em baixo. Estou na batalha e sinto o tremor provocado pelos cavalos e assim adivinho a terra melancólica, taurina, saturnina.

Saturno (em Capricórnio)

[Astropoeta caminha até Saturno que está sentado no muro e estica–lhe o microfone).

A melancolia é uma doença que nos permite ver as coisas como elas são. "… na minha melancolia nada se altera, [pausa] tudo em mim se torna alegoria. Tudo em mim se torna alegria. Minhas imagens passadas têm outra densidade."

Astropoeta

Os guerreiros, esses procuravam o equilíbrio, protegiam o seu umbellicum mundi, e com fé pensavam na morte dos amigos.

Marte (em Balança)

[Astropoeta desloca–se para o lado de Marte (ao lado do Guerreiro Celta) que diz:]

Procuro o equilíbrio entre o dia e a noite, sinto o fundo do céu…

Astropoeta
[Astropoeta coloca a mão no chão, na terra fria do claustro e diz sem olhar para cima:]
Movimento de desaceleração temporal

Sinto o fundo húmido e frio da terra pantanosa. O combate será duro e longo, talvez cesse com a vitória.

[Astropoeta olhando para cima:]

Ser que lho vou dizer? Diz–me queres refazer conosco o ciclo eterno?

Pouso o astrolábio [Astropoeta rebenta o balão contra o chão] olho para as minhas mãos e para o horizonte e vejo um fino interstício de um a outro e retorno ao bordado do céu.

Mercúrio (em Escorpião)
[Mercúrio aparece ao fundo com Horror e Amor — as estrelas Zuben Elgenubi e a Zuben Elschemali – a pinça sul do Escorpião, marcial e saturnina e a pinça norte do Escorpião, mercurial e joviana — enroladas em corda, com quem falará alternadamente. Elas irão desenrolar alternadamente, e depois de desenrolarem, desenham um sorriso no rosto com batom. Horror e Amor esticam o texto face a Mercúrio para que este o possa ler. Astropoeta aproxima o microfone de Mercúrio.]
Movimento de desaceleração temporal

Gostaria que falar fosse sempre uma experiência de linguagem: —um ATO DE HORROR, que chama pelo horror, não porque haja uma reserva acumulada de horror, mas porque esta pinça marcial e saturnina me envenena a voz; —um ATO DE AMOR, não porque haja amor disponível , mas porque o corpo adquire um ligeiro decalque, um declive de amorosa bondade comunicativa. Esta strela, a pinça norte, está na ponta da caneta. O Céu abraça–me a voz.

[Mercúrio deixa cair as cordas e as duas estrelas ficam ali um pouco. Mercúrio retira–se para trás do público. Horror e Amor ficam paradas por um pouco, depois dão as mãos e saem na direção da entrada do museu. Astropoeta segue o Horror e Amor.]

Astropoeta
[seguindo Horror e Amor que vão na direção do museu]

Olho para os dois, HORROR e AMOR, e vejo que gostaria de sorrir de um para o outro, mesmo se é indiferente para o mútuo atravessar a colina do horror ou o declive do amor. Percorramos a vasta estrada do Esquecimento debaixo do deste Céu.

[Astropoeta volta–se para trás e aponta para o fundo do claustro. No fundo do claustro temos Sol que está às cavalitas do personagem Mercúrio, vestido com uma manta refletora dourada.]

Volto os olhos para o horizonte e de longe alveja o Sol, com a armadura brônzea, e cavalga nas costas do bicho lacrau, forjado contra o poder do deus da guerra e dos homens.

[Alhena e a Fortuna sobem para o muro e ligam o flash dos telemóveis, apontando para as suas próprias caras e fechando os olhos. Depois disso, Vénus sobe o muro, colocando–se por detrás delas. Astropoeta volta–se para elas e diz:]

Do alto do firmamento, as estrelas Alhena e a Fortuna sorriem e de mãos enlaçadas respondem–me.

Movimento de desacelaração temporal
[Alhena e Fortuna abrem os olhos e descem o muro, desocultando Vénus. Astropoeta diz:]

Surge então a "domadora de Deuses e Homens" a menina–deusa transforma–se e dá a mão ao coração do Lacrau.

Vénus (em Capricórnio)

Quem se eu gritasse me ouviria entre a ordem dos anjos ou homens?

Movimento de desacelaração temporal
Coro
(e público)

Os anjos não te ouviriam, os seus ouvidos são do inaudível e os homens são surdos ao teu grito. Sai deste Jardim e segue–nos para este sítio como as folhas que descem por um rio, tornar–te–ás livre. A Senhora da Noite espera–te lá dentro.

Astropoeta
[Astropoeta caminha para o interior do museu e as personagens seguem–na. Astropoeta fica no piso térreo do museu junto às escadas e começa a tocar uma música no telemóvel.]

Já estou em casa. Foi o primeiro dia em que senti o Inverno – a água cai incessante do Meio Céu, das águas do Aguadeiro saturnino.

[Astropoeta caminha em direção a Saturno, que está na parte superior das escadas e diz–lhe:]

Porque olhas enviesado daí do alto da tua casa para a luzeira divina?

Saturno
[Astropoeta dirige–se a Saturno apontando–lhe o telemóvel.]

Rasga o véu, menina, "rasga o delicado estofo desta vida", rasga o véu que te aprisiona, rasga–o. Rasga o tecido do Tempo com as cordas da Lira apolínea.

Astropoeta

E a restante vida?

Coro e público

Está em qualquer lugar, a noite desce.

Astropoeta
[Astropoeta sai da sala e dirige–se ao hall de entrada, ficando junto à placa Emergência de Tempos de Urgência.]

Os amigos são uma conspiração de sopros. Torna–se mais fácil respirar. Sopro então ao vento as sementes do futuro que nas patas exuberantes e gargalhantes do cavalo do céu chegarão às fontes e, apesar dos tempos absurdos em que vivemos, tornam–nos libertários.

Movimento de desaceleração temporal

[Ruma à cafetaria, pára em frente da porta e antes de entrar nela diz:]

Chegou o Tempo de fazer o impossível, do "era uma vez, e não era uma vez…".
Sopros assistidos que nos lembram que temos que respirar.
Oi bnniiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii

[Sala de leitura]
Uma ação sobre futuros
Concebido por André Alves
Leitura interpretada por João do Vale

"Futuros. Novos Modelos Mentais, sociais, políticos, afetivos, epistemológicos…"
é uma ação que se desenvolve em torno da ideia de crise de imaginação e da necessidade de novos modelos de existência. Perante a atual perceção de futuro em riso, "Futuros..." busca reflexões de diferentes autores e de diferentes cronologias, como base para repensar e questionar: que futuros?

Uma ação sobre futuros
Uma ação sobre futuros
Uma ação sobre futuros
Uma ação sobre futuros

[Salão nobre]
Protocolos de Encontro
Uma conversa coletiva orientada por
Carla Cruz, Juan Luis Toboso e Magda Henriques.

Protocolos de encontro Protocolos de encontro
Protocolos de encontro
Protocolos de encontro
Protocolos de encontro

Nunca é tarde demais.
Uma leitura dramatizada com André Alves, Filipa Araújo e Max Fernandes.
Guião escrito por André Alves

Nunca é tarde demais [Duas pessoas, P1 e P2, trocam mensagens aúdio entre si.]
(P1) – "Olha, tu nunca mais chegas? Isto deve estar para acabar não tarda nada. Estou a sair de uma coisa chamada "protocolos de encontro" que começou com a gente a comer umas maçãs pequeninas e depois estivemos a conversar. Foi muito fixe, mas ainda estou com fome!"
(P2) – "Estou a chegar. É desta chuva…"
(P1) – "Em vez de molha tolos, devia–se chamar atrasa tolos…"
(P2) – "Cala–te! E que mais?"
(P1) – "Ó pá… houve um momento tão fofinho… estivemos a cheirar o elixir do amor."
(P2) – "Como assim?"
(P1) – "Olha, pelos vistos acredita–se, quer dizer, acreditavam os alquimistas, que o elixir do amor podia ser extraído dos amores–perfeitos. E então eles borrifavam o ar com esse perfume enquanto explicavam essas histórias."
(P2) – "Ó meu, e resulta?"
(P1) – "Não sei. Se calhar apaixonei–me e nem notei."
(P2) – "Ha ha ha ha. E isso foi agora? Se calhar quando chegar ainda sinto o amor."
(P1) – "Não, não. Foi no início. Acho que ainda se sente alguma coisa. Mas para mim é mais a memória disto tudo. Foi logo a seguir à abertura. Começaram a falar do "O que falta é amor", um evento que aconteceu em 2017. E depois ofereceram 100 livrinhos sobre o evento. Mas tenho um bocadinho medo de o abrir – parece que se vai rasgar. Mas se calhar isso é de propósito. E foi nessa altura que começaram a contar as historiazinhas sobre os amores–perfeitos."
(P2) – "Estou a pensar que isso também é constrangedor por ser uma coisa coletiva: de repente apaixonavam–se todos uns pelos outros. Em vez da Estação Encontro deviam ter chamado ao evento Achados e Perdidos."
(P1) – "Ó pá, que riso! Mas isso do amor foi um momento entre. Dali fomos para o claustro e o fresco sossegou–nos. O fresco e a solenidade daquele espaço, não é?, íntimo e público ao mesmo tempo, e com aqueles testemunhos em pedra meio apagados. E depois, no meio delas, estavam umas geringonças de madeira com um visor que podíamos usar para fazer uma escrita direta, para desenhar sobre a realidade. Olha para as fotos."
(P2) – "Essas maquinetas são muito engraçadas. No meio desse cinzento todo parecem coisas vivas. Sabes o que é giro: estou a fazer o mesmo no vidro da camioneta!"
(P1) – "É diferente, aí a paisagem do fundo não tem relação com o vidro."
(P3) [intervém com um tom irónico: a inevitabilidade de ouvir as pessoas chatas que falam super alto ao telemóvel]. –"Vai–me desculpar mas não pude deixar de ouvir a sua conversa"
(P1) [Sem graça] – "hein..."
(P3) – "É que aquilo foi sobre conseguir o máximo de expressão através de ações mínimas. Com a mudança do olhar de trás da câmara para a frente da câmara, expôr–se a dizer o que se vê, expôr a sua pele ao contacto,… é sobre ter eficácia sobre as coisas. E isso é muito valioso."
(P1) – "Fogo, que bonito."
[P1 volta a agarrar o telemóvel para gravar mensagem para P2 a dizer] "Olha, estou aqui a falar com uma pessoa que também viu a Oficina de Escrita Direta, já te falo." [E volta a conversar com P3 sem gravar.]
P1 –"Quer dizer, quem dera que a consequência da nossa ação fosse assim tão simples, não é? Como se se passasse logo do sonho, do modelo mental, à realidade. É preciso tempo, é preciso criar relações, é preciso recursos, evoluções, resultados…"
P3 – "Olhe que não sei."
P1 – "Espere, grave em mensagem"
P3 – "Ah, sim, desculpe. Fiquei a pensar naquela frase da entrada "Emergência de tempos de urgência." Há situações de crise para as quais nos podemos preparar. Situações que se apoiam na questão do tempo, se há tempo ou se não há tempo. E claro, se também há recursos (mesmo que nada garanta que esses recursos vão funcionar). Claro que essas são crises que têm que ver com sobrevivência material e há muitos tipos de crise. E nenhuma me parece tão terrível como a crise da imaginação. Eu achava que aquela representação de pessoas fechadas em casas e caés, fumando e bebendo ao longo das madrugadas de tempos de urgência, era uma espera pela chegada da altura certa para agir. Mas agora entendo essa espera como um aguardar por um novo despontar da imaginação, uma imaginação que não acontece só por reação, presa ao inevitável, mas além dele.
Bom, estou–me a desviar… em todo o caso, na questão da nossa capacidade de responder à urgência, tem que haver uma comunidade, não é? Tem que haver corpos que acionem uma diferença da ordem das coisas."[P1 recebe um novo áudio de P2, em que ela termina a rir.]
(P2) –"Olá nova amiga." [P1 e P3 desatam a rir.]
[Pequena pausa. P1 retoma.]

(P1) – "A espera forma uma comunidade... faz sentido! Há uma causa comum, uma urgência comum. Por exemplo, vemos desconhecidos a querer bater em alguém e metemo–nos ao bedelho. Somos uma comunidade? não somos amigos, é certo, mas naquele momento temos um interesse comum que é a negação da agressão, e daí, passamos a ser um corpo de resistência comum. O agressor, ainda que essencial ao drama, fica fora desse corpo comum. Mas o seu lugar pode mudar, ele pode mudar de ponto de vista. Ou nós! Nós também podemos mudar e passarmos a agressores. Por isso as comunidades não são uma entidade fixa. São um movimento baseado em noções de valor: o que se valoriza? E isso é temporário também: tudo muda; não há comunidades fixas." [Pequena pausa para que P1 e P3 possam olhar a sala em volta, mas continuand a gravar.]
(P1) [P1 prossegue] – "Olha só para nós: nós estamos a ser uma comunidade crítica temporária." [P1 e P3 desatam a rir. Chega novo áudio de P2 a rir. ]
(P1) [dirigindo–se a P3 sem gravar] – "Ai que estranho nós termos rido antes dela. Agora o riso dela não tem graça nenhuma."
[P1 e P3 voltam a rir.]
(P3) – "É como quando eu escrevo hahahaha no chat do telemóvel masa minha cara está séria como um carapau."
[P1 e P3 voltam a rir.]
(P3) [para P1] –"Grava aí."
(P1) [grava áudio]
(P3) – "Para voltar a assuntos urgentes. É surreal que se fale da atual situação ecológica como uma coisa do futuro. Ou até como um mero tema de interesse, e não como uma catástrofe de fato. Uma crise que é ecológica, mas também social e mental, porque não se trata apenas do desastre ecológico, mas da insustentável desumanização, de separação entre incluídos na sociedade e excluídos da sociedade. Com que base se decide essa exclusão ou inclusão? Com que base se decide o valor de uma vida?"
[Pequena pausa. Novo áudio de P2.]
(P2) – "Ora, na verdade, de um ponto de vista antropológico–biológico, nós sabemos que mais do que simplesmente desejar, nós precisamos fazer comunidades e 'pertencimento' para que os corpos mais frágeis possam sobreviver."
(P1) [grava e envia áudio] – "Ai, a gente já avançou. Já não estamos a falar de comunidade." [P3 interrompe aceleradamente – mas o áudio fica cortado a meio:]
(P3) –"Espera, estamos sim, senhora."
(P1) [envia áudio e diz a P3] – "Olha, não gravou o que tu dissseste. Vamos antes fazer uma chamada que este diálogo em pingue–pongue não nos ajuda."
[P1 liga a P2.]
(P2) – "Estás a ligar?"
(P1) – "Estou e coloquei em alta–voz porque estamos a ficar uma comunidade desencontrada. [Voltando–se para P3] Repete lá."
(P3) – "Lá!"
[P1, P2 e P3 riem.]
(P3) – "Estava a dizer que o tomar conta tem uma base biológica. Tu falaste da responsabilidade dos mais fortes perante os mais débeis. Esse é um valor ético que está na base de uma ideologia humanista. Mas esse compadecimento também é coisa instintiva: o sofrimento alheiodespoleta a nossa rede de neurónios–espelho, porque o nosso cérebro faz–nos intuir inconsciente que quem ali está a sofrer somos nós. Aquele é o nosso sofrimento. A empatia resulta disso (e claro está, como disse, de códigos morais partilhados). Mas o código moral desta sociedade capitalista é voltado para a anestesia, não para a empatia."
(P1) – "Uau, tu sabes muitas coisas? E sobre o cérebro e tudo. Por acaso és bióloga, psicóloga…?"
(P3) – "não… trabalho na confeitaria."
(P2) – "EIXXA–LEENTE!!! é isso aí. Toda esta conversa fala da crise moral do capitalismo: o que não é rentável não interessa. E esse é ainda o nosso modelo de participar, de ser nesta sociedade atual." [Gera–se um silêncio incómodo.] "é não é…?"
(P1) – "Sim. Estava a pensar. Mas também estava agoniada, porque é mesmo isso."
[P3 abana a cabeça em concordância.]
(P3) –"Olhem… a gente dizia que a comunidade é uma coisa temporária. Junta–se, dissolve–se; dura, não dura. Mas nós vivemos numa sociedade baseada numa metáfora espacial: estar dentro e fora. O poder neoliberal faz com que os incluídos não confiem nos excluídos, que os vejam como diferentes de si, estranhos, desagradáveis, como diferentes de nós e desmerecedores da nossa solidariedade. Esta desumanização de uns e não de outros, prova a crise social e moral que vivemos."
(P2) – "Anestesia e perda da empatia é o código moral partilhado do capitalismo."
(P1) – "E medo. Medo do outro, medo do isolamento e medo de ter menos. É ridículo, mas eu também sinto esse medo. E logo eu, que cresci com tão pouco; mas agora não sei se estou preparada para voltar atrás. Vocês estão preparadas para ter menos, para que os outros tenham mais?"
(P3) – "não há outra forma. não há volta a dar. A forma como a sociedade capitalista se desenvolveu deixou–nos sem ar, perdidos da vida, e vai–nos deixar sem vida."
(P2) – ... [som de respiração rápida.]
(P1) – "Está tudo bem contigo?"
(P2) – "Sim… estou, quase, quase a chegar à Sociedade."
(P3) – "A questão é: que tipo de sociedade?"
[P1, P2 e P3 riem.]
(P3) – "Por mim podia ser uma sociedade com botões para desacelerar o tempo. Olhem… podemos desligar a função altavoz? Consigo ouvir–vos melhor se for à vez, em vez de tudo ao mesmo tempo."
(P1) [diz a P3] –"Desliguei. [P1 recomeça a gravar áudio.] Olha, falando em tempo, houve uma leitura encenada no claustro que falava sobre desacelerar tempo e sobre encontrar..." [P3 atropla P1 gritando no meio da frase] (P3) –"Futuros."
(P1) –"Caminhos... futuros... Começou no exterior e depois caminhou para dentro da Sociedade. E os presentes funcionavam como coro."
[P1 envia áudio.]
(P3) [diz a P1 a rir:] – "Grava, por favor."
(P1) – "Tá."
(P3) – "E depois desaceleraram ainda mais o nosso tempo com vinho quente e merenda."
(P2) [Envia um áudio com alguns sons de fundo] –" Ui… … soa lindamente"
(P1) – "Estás a falar com alguém?"
(P2) – "ó pá, não, já estou aqui dentro, mas perdi–me. Entretanto entrei numa biblioteca linda e estava a ler umas frases sobre futuro – nem de propósito – que estão pousadas sobre as mesas. Ia aproveitar para fazer um livro, mas estavam a dizer–me que isto fica aberto até ao fim da noite."
(P1) – "Sim, anda ter cá e vamos depois."
(P2) – "Ai eu quero voltar aqui. Mas sim, onde estão?"
(P1) – "Estamos no Salão Nobre – é em frente. Foi aqui que houve aquela conversa sobre os protocolos de encontro." [P1 e P3 caminham para o exterior do Salão Nobre.]
(P2) – "E eu desencontrada!"
[P1 e P3 riem novamente.]
(P2) – "Ah, esperem… já vos vejo." [Caminha em direção ao grupo e diz em pessoa.] "Bom mais vale tarde que nunca."
(P3) – "Depende, e se for tarde demais?"
(P2) – "Nunca é tarde demais."

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